28 agosto 2013

Divagações numa tarde de quarta

Em 1980 morava eu na Ceuaca-Casa do Estudante Universitário Aparício Cora de Almeida, na Riachuelo - bem no centro da nossa sempre e saudosa capital (ainda que ela, naqueles tempos, me olhava de soslaio, achando estranho eu andando de bombacha e alpercatas pela Rua da Praia.
Já então com livro publicados e circulando nas rodas e rondas literárias, certo dia descobri que o magistral Dyonélio Machado - autor de obras magníficas como Os Ratos e O Louco do Cati - morava naquele prédio espigado, escuro e vetusto que fica na esquina da Borges com a Salgado. Charlando com os porteiros, logo descobri a rotina dele - horário de saída para as caminhadas, a despeito de ostentar mais de 70 anos. Assim, numa manhã de sábado fiquei bombeando nas cercanias quando vi aquela figura elegante, caminhar compassado. Me aproximei, me apresentei e disse que teria muito prazer que ele, tendo tempo e coragem, desse uma olhada nos meus poemas já enfeixados em forma de livro.
Pegou o livro com um imenso carinho, falou acerca do fato de eu estar de bombacha e ponderei que era mania que tinha trazido de Candelária. Disse que todos nós carregamos mundos e lugares. Antes de continuar a sua caminhada, perguntou se eu estaria na cidade no outro sábado. Disse que não, só em 14 dias e me convidou para ir a sua casa...
Em 14 dias voltei e daí comecei a ficar sem entender nada.
O porteiro estava avisado e sabia do meu nome.
Conduziu-me até o apartamento, onde fui recebido por ele e sua esposa de tantos e tantos anos.
Falamos de coisas do campo. Falamos de livros. Falamos de vinho - na verdade ele falou, eu silenciei, porque naqueles tempos o luxo máximo era beber um Liebfraumilch (porque eu gostava mesmo era de cerveja e steinhägger). Por dois ou três sábados, era meu programa na parte da tarde.
É de lá que trago ensinamentos e uma tristeza.
Recebi exemplares da primeira edição de Os Ratos e de O Louco do Cati - ambos autografados e com dedicatória fraternal. O primeiro foi surrupiado por um amigo jornalista em Floripa e o segundo mandei para a Gazeta do Sul (de Santa Cruz do Sul), onde eu tinha uma coluna semanal de livros. Sei que mandei aos cuidados do Romeu Inácio Neumann. Naqueles tempos, era preciso fazer PMT dos livros - era um processo rudimentar. De todos os livros que encaminhei, foi um dos tantos que não recebi nunca mais (e lembro com saudades do livro autografado pelo Quinta, a trilogia do Cyro Martins, etc).
São perdas que vamos carregando.
Foi num dos tantos sábados comendo bolinho de chuva, pão com geleia e falando dos tempos de deputado Constituinte do RS pelo PCB que Dyonélio Machado me "apresentou" a Cyrano de Bergerac - a comovente história de amor e de bravatas que Edmond Rostand escreveu em 1897.
Ao longo dos anos que se passaram desde 1981, devo tê-la lido mais de 10 vezes.
Numa das tardes de sábado, Dyonélio foi até uma mesa e pegou um livro.
E fez a apresentação, dizendo que era mais do que um livro, era uma vida.
Falou da obra, do amor e da morte.
Perguntou se eu lia em francês e nem precisei responder para ele emendar: Vai lá no Martins e pega uma tradução do Porto Carrero que tem lá. Pode pegar que depois eu passo lá para pagar. E quando lá cheguei na terça, o livro já estava com o Martins a minha espera
Num pedaço de papel, vi ele escrevendo algo.
Quando estava de saída, entregou o pedaço de papel e apenas disse: não leia agora que está curioso. Leia quando estiver precisando de companhia. 
"Sê para ti tudo quanto colhas
quer flor, frutos ou simplesmente folhas"
Estes versos, são minha referência e meu parâmetro....

8 comentários:

  1. Belas "divagações", Alfredo. Que só me fez ter ainda mais saudades de Porto Alegre, a cidade que tive que deixar por necessidade econômica mas que preferia nunca ter deixado, menos ainda para vir morar nesse atraso de vida que é Florianópolis [que só é bonitinha em cartão postal e interessante quando se passa alguns dias de férias aqui].

    Fiquei curioso, o que é PMT, não saquei.

    Também vale registrar que, ao menos entre os brasileirinhos "honestos", não se deve emprestar nada, não apenas livros.

    Por essas, também perdi belos livros, estimados e raros discos de vinil, fitas VHS feitas no Japão, apostilas com material inédito do meu curso na Bélgica... demorei, mas hoje não empresto mais nada! Brazuquinhas não devolvem!

    O prédio do Dyonélio de que falas é o do antigo Cine Vitória ou o da frente?

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    1. Sobre PMT - era a sigla para um processo de "prova de material", que a gente usava para dar uma última revisada nos "originais". O PMT era em positivo e era usado para fazer o negativo (filme).

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  2. Bacana, Alfredo. Admiro muito quem vem do interior pra vencer. Sendo da capital, já é difícil. O RS tem uma cultura riquíssima, mas as oportunidades profissionais são escassas.



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  3. É verdade, Vinnie.

    Pois é, um dos meus melhores amigos que muito prezo, Nelson Eduardo Klafke, ex-médico, agora causídico, politicamente antenado, é de "cão-de-lara"...
    Ah, gremistaço, claro!

    Acho que essa cidade vai dar boa, se valer a amostragem...

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  4. Excelente texto Alfredo!

    Poderia fazer mais postagens trazendo outras divagações como essa, muito bom mesmo.

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